segunda-feira, 24 de setembro de 2018

ONDE TUDO COMEÇOU

Foto: Reprodução/YouTube


Luiz Gonzaga começou sua jornada de meio século de sucesso de forma bem modesta, como todo nordestino que tenha sua sorte na cidade grande. Antes de atingir o auge de sua carreira, Gonzagão se apresentava em bares e até mesmo nas calçadas da zona portuária do Rio de Janeiro, então capital federal, sem um ritmo específico que o marcasse – a primeira vez em que subiu em um palco foi em 1939 no cabaré O Tabu, na rua Mem de Sá, no bairro da Lapa. Ele tocava valsas, tangos, choros, mazurcas, entre outros gêneros.

O primeiro sinal de "nordestinidade" veio em 1940, quando um grupo de estudantes cearenses o convenceu a mudar o repertório, já que tinham saudade do Nordeste e gostariam de ouvir músicas de sua terra natal, sob pena de não mais colocarem dinheiro no pires do tocador – forma com que os artistas não renomados que tocavam na noite carioca recolhiam o dinheiro das pessoas que acompanhavam as apresentações. Foi aí então que surgiram as primeiras composições com traços nordestinos de Gonzaga, "Vira e Mexe" e "Pé de Serra" (não confundir com a clássica "No meu pé de serra").


Foto: Autor desconhecido


Foi então que o sanfoneiro de Exu resolveu mais uma vez enfrentar o tradicional programa "Calouros em desfile" da Rádio Tupi, apresentado pelo genial Ary Barroso (1ª foto) - já que havia estado lá em outras ocasiões e sempre com notas apenas medianas apresentando valsas e tangos.

O próprio Luiz Gonzaga conta esta história no livro "O sanfoneiro do Riacho da Brígida", de Sinval Sá, em que uma autorrelato sobre sua história de carreira e de vida. Confira abaixo um trecho do capítulo.


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NO CALOUROS, DO ARI


Eu andava meio nervoso, ansioso por tocar o "Pé de Serra" no "Calouros", do Ari. Mas vacilava se devia tocar o "Vira e mexe". O domingo pareceu-me um longo dia, tão impaciente estava. Por isso me irritei com o Zé*, sem necessidade. Logo cedo fui me chegando pro auditório da Tupi, o relógio lento parecendo não querer sair do lugar.

Quando chegou minha vez, eu estava um tanto receoso:

- Luiz Gonzaga!
- Pronto! 

Berrei meio ressabiado.

- Outra vez? Tá ficando freguês, hein? Qual é a valsa de hoje?

Me abalei um pouco, mas respondi decidido:

- Não é valsa não, seu Ari.
- Vai tocar um tango? Isso é instrumento de tango, mesmo.
- Também não. Vou tocar um negócio lá do Norte, seu Ari.
- Como é o nome desse negócio?
- "Vira e mexe".

Riu. Fez um trocadilho, sarcástico:

- Pois arrivira e mexe esse danado... A gente vê cada uma!

A gargalhada foi geral.

Mas eu me lembrava dos estalos de dedos dos cearenses daquele "pai-d'égua" consagrador. Sapequei o danado do chamego. Os gritos foram amortecendo, houve um silêncio nervoso. Percebi logo, pela inquietude silenciosa da assistência, pela cara séria do Ari, despojada daquele ar irônico, que ia bem, que acertara. Olhei pra cima, pro controle. Vi rostos espantados. Um deles, famoso nas revistas e nos jornais, como cantor e narrador. Era o Almirante**. Fazia sinais pro Ari. Ari foi lá. Houve uma conversa rápida. Voltou quando eu tremia as últimas notas e o auditório estrugia em palmas, pedindo bis.

Ari explicou que o programa não admitia bis, havia muitos candidatos a serem ouvidos. Gritava:

- Calma, pessoal! Vocês vão ouvir o rapaz do "Vira e mexe" no desfile das 21 horas.

Tive a nota máxima naquele dia. 

Saí de peito lavado, dando razão aos cearenses. Eles é que estavam certos, admiti. Os 150 mil réis eram uma boa aragem. Mas o principal mesmo era saber que havia ambiente propício às músicas do nosso sertão, havia um filão a explorar, até então virgem, pois não passavam de contrafações grosseiras aqueles programas sertanejos com emboladas e rancheiras. (...)


*Zé do Norte: Alfredo Ricardo do Nascimento, famoso radialista, escritor e compositor paraibano que fez muito sucesso na era de ouro do rádio brasileiro nos anos 40 e 50.

**Almirante: Henrique Foréis Domingues, compositor, cantor e radialista carioca que também fez grande sucesso a partir dos anos 40.


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