quarta-feira, 8 de julho de 2020

A RELIGIOSIDADE E A NATUREZA

Imagem: Facebook/Portal O Nordeste


Foto: Reprodução/Internet


A religiosidade e a natureza foram dois dos principais motes na obra de Luiz Gonzaga. Ao longo de suas 5 décadas de carreira, o Rei do Baião se inspirou bastante nas crenças, tradições e na paisagem do seu pé de serra, onde veio ao mundo há quase 108 anos.

Seu pai Januário sempre compunha suas toadas no fole de 8 baixos com estas mesmas inspirações para animar os sambas do Araripe no começo do século passado. E tal feito passou para o filho como podemos ouvir e apreciar no repertório de Gonzagão - num total de 78 gravações com esses motes.

Mesmo no tempo em que ainda não era tão famoso e que sequer cantava em suas gravações, Luiz Gonzaga já introduzia em sua música composições relacionadas ao meio ambiente. A primeira delas ainda foi em seu primeiro ano como artista profissional, em 1941, quando gravou a instrumental "Arrancando Caruá" de sua própria autoria. Caroá, como se escreve corretamente, é uma bromélia de pouca folhagem típica da caatinga nordestina e que possui flores avermelhadas. Já colocando letra na música, a pioneira com referência à natureza foi com a hilária marchinha carnavalesca "Ovo Azul", em co-autoria com Miguel Lima no ano de 1945.

Daí por diante foram 52 músicas em sua discografia exclusivamente com inspiração para homenagear, louvar, apreciar, associar ou simplesmente fazer brincadeira com a natureza, seja com animais ou plantas. A mais conhecida de todas, sem dúvidas, é a icônica "Asa Branca", de sua autoria com Humberto Teixeira do ano de 1947. Mas também podemos citar "Assum preto", "Sabiá", "Juazeiro", "Acácia Amarela", "Riacho do Navio", "Siri jogando bola", entre tantas outras.


Foto: Luís Fábio Silveira/ResearchGate


Já em relação à religiosidade, Gonzaga cresceu ouvindo sua mãe Santana puxando e cantando nas novenas à Nossa Senhora na sua infância e certamente isso foi outra grande inspiração para incluir em sua obra este fervor da fé tão presente na vida do sertanejo. Através da religião, o Velho Lua agradeceu por intercessões em sua vida, louvou santos e personalidades religiosas ou simplesmente fez alusões da fé cristã com nosso cotidiano.

A primeira gravação do sanfoneiro com uma amostra de sua fé cristã foi em 1944, ainda na fase apenas instrumental com "Subindo ao céu", de Arestides Borges. Já a primeira gravada com letra foi em 1951 em "Baião da Penha", de Guio de Moraes e Davi Nasser. 

Como curiosidade, esta música foi uma espécie de pagamento de promessa à Nossa Senhora da Penha, que possui uma igreja em sua consagração na Vila da Penha, no Rio de Janeiro, famosa por sua longa escadaria para se chegar até ela. Neste mesmo ano o Rei do Baião sofreu seu primeiro dos dois acidentes automobilísticos que marcaram sua trajetória. Foi na cidade Santos/SP, quando vinha acompanhado de seus músicos Catamilho e Zequinha, quando o automóvel em que estavam despencou em uma ribanceira por vários metros e todos saíram ilesos.

Ou seja, Luiz Gonzaga sempre esteve ligado à fé e fez questão de incorporá-la à sua obra.


Imagem: CRB-SP


Dentre as quase 700 músicas gravadas pelo Rei do Baião, 26 tiveram cunhos ligados à religiosidade. E destas 26, certamente "Súplica cearense", de Gordurinha e Nelinho, e "Ave-Maria sertaneja", de Júlio Ricardo e O. de Oliveira, são as mais tocadas e lembradas. Mas podemos citar vários clássicos nesta vertente como "São João do Carneirinho", "Obrigado, João Paulo", "Beata mocinha", "Lenda de São João", "Frei Damião" e muitas outras.

Abaixo, Gonzaga canta e toca uma música que mistura um pouco dos dois casos - "O papa e o jegue", de sua autoria com Otacílio Batista. Fala do "nosso irmão" jumento, tão versado em sua obra, num imbróglio com uma viagem para o Vaticano, sede da Igreja Católica, numa história bem descontraída. Esta composição, curiosamente, foi inspirada num folclórico paraibano que vivia em Brasília chamado Damião - citado na letra - que tentou presentear o papa João Paulo II com um equino durante sua visita ao Brasil em 1980, obviamente sem sucesso.

Aliás, a referência ao animal ser nosso irmão, não custa lembrar, é do padre Antônio Vieira, outra grande personalidade religiosa da história do nosso Nordeste brasileiro e que foi solenemente citado na clássica "O jumento é nosso irmão", de Gonzagão e José Clementino.




O Papa e o jegue - Luiz Gonzaga/Otacílio Batista (1983)


"O jumento é o símbolo da pobreza
Animal que figura no Evangelho
Comedor de molambo e papel velho
Não tem medo de fome em sua mesa
Ao seu dono ele dá pouca despesa
No verão, no inverno ou no sol quente
Pensador, preguiçoso e paciente
Foi amigo do filho de Jeová
Hoje serve a carne de jabá
Nas cozinhas mais ricas do Oriente

Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.
Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.

Traz o jegue no lombo a cruz da morte
O sinal do menino de Belém
Jesus Cristo quis visitar Jerusalém
O jumento serviu-lhe de transporte
No Brasil o jumento teve a sorte
De ser presente do Papa um santo nome
Vai comer do que pouca gente come
Nos quintais do palácio italiano
Engordar nos jardins do Vaticano
E seus irmãos no Brasil passando fome.

Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.
Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.

César Coelho apitou a decisão
Da Itália jogando com a Alemanha
Havelange lamenta na Espanha
A derrota da nossa seleção
Os romanos levaram o canecão
Paulo Rossi é da copa o artilheiro
Nós perdemos por causa do goleiro
Mas em nome da língua de Camões
O jumento transmite aos campeões
Um abraço do povo brasileiro.

Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.
Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.

Assessores do papa, cardeais
Baseados no Velho Testamento
Cancelaram a viagem do jumento
A noticia que o jegue não vai mais
Damião, deixa o seu burrico em paz
Já que o Papa recusa o jeriquinho
Pra ninguém não chamá-lo de imbecil
É melhor desistir desse presente
Com a abertura do nosso presidente
O lugar do jumento é no Brasil."

Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão.
Quer queria, ou quer não
O jumento é nosso irmão."

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